A arte de esquecer
Pôr os sentimentos de lado é permitir que a vida prossiga
O livro mais triste que conheço sobre o amor se chama O legado de
Eszter, do húngaro Sándor Márai. Quando o li, tive a sensação de que
minha vida, como a da personagem, seria destruída pela esperança de um
romance irrecuperável. Eszter espera pela visita do grande amor do
passado, que a salvará de uma existência de solidão e vergonha. Eu
esperava pelo retorno de uma mulher que nunca voltou.
Lembro o livro, o período e a dor como partes de um mesmo corpo. A
prosa límpida e hipnótica de Márai ligava a vida da mulher no início do
século XX à minha, que se desenrolava às vésperas do século XXI. As
personagens e as palavras dele deram àquele momento as cores de uma
profunda melancolia, mas a tingiram, ao mesmo tempo, de uma estranha
lucidez. Lembro-me de pensar, de forma um pouco dramática, que afundava
de olhos abertos.
Fui procurar ontem o livro na minha estante e descobri que não está
mais lá. Sumiu, assim como o afeto inextinguível que eu sentia. Alguém
levou meu livro embora, ou se esqueceu de devolvê-lo. O tempo dispôs
silenciosamente da minha paixão. Diante disso, me ocorre que esquecer é
uma benção – ou uma arte, a aprimorar meticulosamente ao longo da vida.
Pôr pessoas e sentimentos de lado é permitir que a existência prossiga.
Não há nada que eu gostaria tanto de ensinar aos outros e a mim mesmo
como a capacidade de deixar sentimentos para trás. Olho ao redor e vejo
gente encalhada como barcos na areia. Homens e mulheres. Esperam pelo
passado, embora a vida se espraie em possibilidades à volta delas.
Precisam de tempo para se recuperar, mas carecem de luz. Necessitam
entender que a dor – embora inevitável – não constitui uma virtude, nem
mesmo um caminho. Tem apenas ser superada, para que o futuro aconteça.
A Eszter de Márai vive encarcerada no universo moral e jurídico legado a
ela pelo século XIX. Mulher, seu destino era ligado às decisões de um
homem, Lajos. Ela espera porque não tem meios de agir. Ser corrompida
pela esperança e pelo perdão é o que lhe resta. Sua posição na sociedade
consiste numa espécie inexorável de destino.
Não há, no mundo em que vivemos, uma jaula social correspondente aessa. Fazemos nossas escolhas no interior de amplos limites existenciais. Somos inteiramente responsáveis por nossos sentimentos, ou ao menos pelas atitudes que tomamos diante deles. Se decidimos ficar e esperar, se permitimos nos tornar o objeto passivo das manipulações ou indecisões alheias, não há um Lajos a quem acusar. Ainda assim, construímos prisões mentais à nossa volta. Prisioneiros de uma noção ridícula de amor do século XIX, quando ainda não havia liberdade pessoal, imaginamos que o amor é único e eterno – e que perdê-lo equivale a perder a vida, como um trem que passasse uma única vez numa estação deserta. Nada mais longe da realidade. Nossa vida se abre desde o início em múltiplas possibilidades e se desenvolve em companhia de inúmeras pessoas. Alguns terão papéis importantes e duradouros. Outros serão passagens breves e luminosas, como uma tarde de verão. Todos, com uma ou outra exceção monumental, veremos partir. Nós mesmos iremos embora em incontáveis ocasiões. Nos restará o desapego, como antes só restava a Eszter a resignação. Por isso, a arte de esquecer é essencial. Ela me parece a mais moderna das sabedorias sentimentais, aquela que mais permite mover-se no mundo como ele é, não como nos fizeram crer que ele seria. Nesse mundo haverá sexo, haverá paixão e, às vezes, haverá amor. É provável que haja desencontro e ruptura e que sejamos forçados a começar de novo, sozinhos. Esse é o ciclo da vida como ela se apresenta no século XXI. Nele, deixar para trás e esquecer é tão essencial quanto reconhecer e se vincular. Consiste no nosso legado sentimental. Ele começou a ser elaborado por tipos rebeldes nos anos 60 e continua a ser refeito hoje em dia. Nada tem a ver com o legado de Eszter, embora este ainda nos ensine e nos comova.
Ivan Martins, escreve ás quartas na revista Época, Brasil
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